Arquivamento de inquérito em caso de violência doméstica e familiar

Raquel Alves

Em casos excepcionais, 6a Turma do STJ admite Mandado de Segurança contra decisão que homologou pedido do Ministério Público de arquivamento do inquérito

Imagine a seguinte situação: Fernanda sofreu violência verbal e física, por parte do seu namorado, na casa dele. Indignada, foi à delegacia, contou tal situação e se submeteu a um exame pericial, que constatou múltiplas lesões no seu corpo, e o inquérito foi aberto.


Observação: Uma vez aberto o inquérito, o Ministério Público tem o dever de apresentar denúncia, salvo se entender que não é o caso, quando pede a homologação do arquivamento pelo juiz.


Analisando o inquérito, o Ministério Público entendeu que as provas eram frágeis e, sem determinar qualquer outra diligência (exemplo: não procurou testemunhas ou outras informações), pediu o arquivamento ao juiz, ou seja, em que pese a narrativa da vítima haver sido corroborada pela constatação de lesões no laudo pericial, o inquérito policial foi encerrado sem que fossem realizadas outras diligências para apurar a possível situação de violência doméstica.


Observação: O que o juiz pode fazer nesse caso?

1. Discordar do pedido de arquivamento e determinar melhor análise da questão pelo Procurador-Geral de Justiça (PGJ); ou

2. Homologar o pedido de arquivamento.


O juiz homologou o pedido e manteve tal homologação, mesmo diante do pedido de Fernanda de reconsideração (com apresentação de novos documentos e rol de testemunhas) e do seu pedido de remessa dos autos para revisão pelo PGJ.


Nesse caso, a pergunta é: cabe recurso? A jurisprudência majoritária do STJ entende que decisão de juiz singular que homologa pedido de arquivamento de inquérito é IRRECORRÍVEL, por falta de previsão legal!


Ocorre que, indignada, Fernanda impetrou mandado de segurança, com requerimento liminar, pedindo a concessão da segurança para determinar o prosseguimento das investigações ou, subsidiariamente, a remessa dos autos para revisão do arquivamento pelo PGJ, por entender que tinha direito líquido e certo ao prosseguimento das investigações, pela existência de indícios suficientes de autoria e materialidade delitiva diante das provas apresentadas e pelo seu direito de, como vítima, pleitear a revisão do arquivamento ao PGJ, de acordo com o artigo 28, parágrafo 1o do Código de Processo Penal.


O que aconteceria, em regra geral, nesse caso? O mandado de segurança seria denegado, com chancela do STJ.


Porém, a Sexta Turma do STJ entendeu pelo cabimento do MANDADO DE SEGURANÇA em uma situação como aquela, excepcionalíssima, porque o exercício da ação penal em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher é instrumento para garantir os direitos humanos e o cumprimento das obrigações internacionais do Estado brasileiro.


  • Lembre-se que, no julgamento do caso Favela Nova Brasília v. Brasil, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, houve o reforço do fato de que os países signatários da Convenção Interamericana de Direitos Humanos têm o dever de, diante de notícia de violação de direitos humanos, agir com a devida diligência para promover uma investigação séria, imparcial e efetiva do ocorrido, no âmbito das garantias do devido processo, especificamente em relação ao arquivamento de inquérito sem prévia investigação com diligência, razão pela qual surge a possibilidade de impetração do mandado de segurança, de acordo com a Sexta Turma do STJ.


  • Lembre-se, também, que no julgamento do caso Barbosa de Souza e outros v. Brasil, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, alertou que a ineficácia do Judiciário brasileiro frente a casos individuais de violência contra as mulheres propicia um ambiente de impunidade que promove a repetição de fatos de violência em geral.


No referido caso, a Sexta Turma do STJ consignou que a existência de lesões recíprocas não afasta a necessidade de investigar os fatos, até para averiguar se houve excesso, diante da aparente desproporcionalidade das lesões existentes nele e nela; e que deve ser valorizada a palavra da mulher, em caso de violência doméstica e familiar, de acordo com o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça, especialmente quando há outros indícios que a amparem.


"Faz parte do julgamento com perspectiva de gênero a alta valoração das declarações da mulher vítima de violência de gênero, não se cogitando de desequilíbrio processual. O peso probatório diferenciado se legitima pela vulnerabilidade e hipossuficiência da ofendida na relação jurídica processual, qualificando-se a atividade jurisdicional, desenvolvida nesses moldes, como imparcial e de acordo com o aspecto material do princípio da igualdade (art. 5º, inciso I, da Constituição Federal)." (In.: Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero. Brasília: Conselho Nacional de Justiça/CNJ, 2021, p. 85, sem grifos no original)

Finalizou a Sexta Turma do STJ entendendo pela existência de violação a direito líquido e certo e, nesse caso, a possibilidade de excepcional concessão de segurança para cassar a decisão judicial que homologou o arquivamento do inquérito e determinar a remessa dos autos ao PGJ para melhor análise quanto ao possível exercício da ação penal ou à realização de novas diligências investigativas antes do arquivamento, salientando que, com isso, não estabelece nenhum juízo de valor sobre a veracidade, ou não, da narrativa de Fernanda, cuja apuração encontra-se em fase inicial e competirá às instâncias ordinárias no curso do devido processo legal. Aduziu que constata-se, com tal decisão, apenas, que a palavra de pessoa que se apresenta como vítima de violência doméstica contra a mulher deve ser examinada com a seriedade e a diligência compatíveis com os estândares nacionais e internacionais próprios da investigação deste tipo de delito, o que não foi observado no caso em apreço.


Decisão em Recurso em Mandado de Segurança nº 70338 - SP (2022/0386527-1) - Relatoria da Ministra Laurita Vaz - 22/08/2023


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