Toda pessoa que faz um exposed comete crime de difamação?

Raquel Alves

A diferença entre animus diffamandi e animus narrandi

Ontem as redes sociais brasileiras foram tomadas por um só assunto: a traição sofrida por uma cantora brasileira, que, há pouco tempo, tinha feito uma música muito bonita endereçada nominalmente ao seu então amor.


Muito se discutiu sobre a onda de traições que têm vindo à tona, protagonizadas por homens famosos; muito se falou sobre a dor de uma traição; muito se debateu sobre a liquidez dos relacionamentos de hoje em dia; enfim, os debates foram vários.


Porém, o que me chamou atenção foi a maneira rápida com que algumas pessoas foram categorizando a conduta da cantora como crime de difamação.


Será?


O crime de difamação está insculpido no artigo 139 do Código Penal e prevê pena de detenção de 3 meses a 1 ano, e multa, àquele que "difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação".


Ora, é certo que o crime de difamação não permite exceção da verdade (só se o ofendido é funcionário público, no exercício de suas funções), então, se o fato ofensivo é verdade, ou não, é indiferente para a caracterização do crime.


Entretanto, sabe uma das coisas que é importante para que haja tal crime? A existência de dolo, afinal, não existe crime de difamação culposo.


Dolo é a vontade livre e consciente de, no caso, difamar alguém. E será que houve animus diffamandi no caso da cantora?


Vejamos:


A leitura do texto se deu em um dos programas mais assistidos na manhã das TVs brasileiras, tendo a conversa entre a apresentadora e a cantora, antes, sido a seguinte:


Apresentadora: "Pois é, a gente estava falando da música mais tocada hoje, né, na internet, e no mundo todo mundo está escutando, que é a sua música 'Chico', né, que é de um namoro de, quantos meses?"


Cantora: "Quatro."


Apresentadora: Quatro meses. Uma coisa que eu queria te contar, minha, pessoal agora, é que, às vezes as pessoas falam assim, né, 'imagina, né, faz uma música, tá apaixonada com quatro meses, não sei o que, e eu queria dizer que eu já casei com muito menos de quatro meses. Eu não fiz música porque eu não sabia. E eu queria, assim, eu queria que as pessoas respeitassem, né, o amor, porque isso aí é respeitar o amor de cada um. Ninguém sabe a intensidade do amor de cada um, né, olhe pra dentro de vocês mesmos, né, em vez de ficar criticando, né, e vejam se vocês são capazes, né, de se apaixonar com tal intensidade para escrever uma música tão lindo quanto a que ela escreveu, né, nessa música 'Chico', e que seriam capazes de se entregar nessa intensidade para o outro, né. E a única coisa que eu espero muito, né, na vida, é que você, mesmo tendo desilusões a respeito de relacionamentos, que todos nós, quem não os teve um dia, mulheres, homens, né, que você não perca nunca, sabe, essa sua capacidade de amar, né. E eu vou falar outra coisa ainda, porque ela me deu permissão, hoje de manhã a gente conversou e ela escreveu um texto, que tá no celular dela, é um dos textos maravilhosos, que eu acho que é um recaso para todas aquelas pessoas que já traíram alguém. E eu, ela não queria, mas ela também me permitiu, é, e eu pedi que ela lesse esse texto aqui para mim, você pode, pode ler?"


Cantora: "Posso"


Apresentadora: "Pode. O celular da Luísa, por favor, alguém?"


Cantora: "Será que eu leio mesmo? Ana Maria... ok, bom..."


Apresentadora: "Porque ela tá, ela desmanchou com o Chico, né, e ela escreveu esse texto, e eu gostaria que vocês escutassem."


Cantora: "Ó, ok, gente, não estava programado. Eu mostrei esse texto, que é um dos textos que eu faço; eu faço vários textos, mas, enfim, ela pediu e, obviamente, eu não poderia negar."


Apresentadora: "Faz todo sentido, sabe por quê? Porque faz sentido para todos nós.


Cantora: "É, mas eu acho que esse texto não é sobre mim, eu já quero adiantar, não é só sobre mim, sabe, eu acho que é mais, muito mais também sobre tudo que eu vi desde criança e tudo, o lugar que isso pega em mim, que não é sobre um ato isolado, é uma estrutura, uma história que a gente vê se repetindo, muitas vezes, com muitas mulheres. Enfim, vou ler para vocês."


E aí ela lê o tal texto e nos perguntamos: houve a imputação de um fato ofensivo, no caso, a traição, a outrem? Sim.


Porém, está inegável a existência do dolo de difamar? Não.


Existe uma diferença entre o animus diffamandi e o animus narrandi - este, que não configura crime.


A referida cantora fez tal música, que viralizou há pouco tempo e, tendo sido convidada para um programa, logicamente que uma das perguntas seria sobre o relacionamento que ensejou a música.


De acordo com elas, nos bastidores, a apresentadora teria conversado com a cantora sobre o relacionamento, quando teria tomado conhecimento do término e do texto e, tendo ficado bastante sensibilizada com a escrita - tanto que chorou copiosamente durante a leitura - pediu que fosse lido na entrevista, o que a cantora titubeou mas terminou por fazer.


Podemos discutir se o texto foi uma estratégia de marketing? Podemos. Podemos debater se foi uma "cortina de fumaça" para outra notícia que estava saindo sobre a cantora, na mídia? Podemos.


O que não podemos fazer, entretanto, é dizer, categoricamente, que houve a ocorrência de um crime.


Tal afirmação só pode ser feita no bojo de um processo criminal, que avalia todo o contexto e as provas trazidas aos autos, que vão debater o dolo de difamar. E ressalto que, em muitos casos da jurisprudência, a responsabilidade criminal não fica caracterizada, por se verificar o animus narrandi, nem a cível, por se visualizar apenas o exercício regular do direito de liberdade de expressão, sem excesso.


Portanto, vamos ter mais cautela em imputar, a qualquer exposed, a pecha de ilícito cível ou criminal.

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